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sábado, 23 de maio de 2015

LEMBRANÇAS

Regina Barros Leal

Márcia procurava a caixa onde sua amiga, com muito zelo, mantinha as antigas cartas e suas pequenas lembranças. Remexia as gavetas da pesada cômoda que estava na família há anos. Encontrara papéis amarelecidos e algumas peças de roupa íntima já gastas pelo tempo. Fatigada, quedou-se por um instante! Placidamente divagou o olhar pelo quarto. Deu-se conta do nostálgico local.  Era um ambiente incomum. As paredes eram revestidas de papel parede listrado e entremeado de pequenas rosas. O colorido já não tinha a mesma tonalidade, todavia expressava uma singular aparência. Os lustres, pintados à mão, desciam majestosos pendurados em correntes douradas. Os móveis, em estilo colonial, de cor escura, davam um toque de austeridade ao lugar. Era o antigo quarto da bisavó, que teria sido ocupado pela avó e atualmente, o recanto de sua amiga, com seus 72 anos de idade, acometida por uma doença terminal. O ambiente revelava as marcas do tempo traspassado de subjetividade feminina.

Envolvida por esse ambiente que abrigava diversas histórias familiares, sentou-se à penteadeira e viu uma escova oval, banhada de prata. Relembrou sua adolescência quando se esmerava no trato de seus cabelos longos. Sentia prazer em penteá-los, especialmente, para ir às tertúlias. Que nostalgia! As tertúlias, o som do pistom e a pista de dança! As luzes no salão de festa! Lembrava-se do rito da espera da festa, os preparativos, dos vestidos de tafetá, dos cochichos, dos jogos de sedução da época.  Tudo era tão fascinante!

Entretanto, rompendo a cortina do tempo, voltou a rebuscar os armários. Finalmente! Eis a caixa que ela pedira.. Tamanho médio, vermelha, com rosas amarelas e enfeitada com um laço de fita de cor branca.  Dentro, cartas, cartões, fotografias, bilhetes, miúdos adereços. Sentiu uma inefável sensação. Pudera! Mergulhando no tempo de outrem.... Quem sabe? Estórias intercaladas de risos e lágrimas. Não sabia bem por que, mas teve a sensação de estranhamento. Pareceu-lhe usurpar um templo, um espaço privado, intocável, misterioso e repleto de segredos. Sentiu-se invasora. Retrocedeu. Imaginou a bisavó da amiga, seus amores, seus medos, sua polidez. Lembrou-se de sua avó, uma velha senhora, de olhos azuis, pequenina, cabelos grisalhos, de feições severas e gestos vagarosos. Pensou em sua mãe, curiosa, criativa, miúda, romântica. Recolhia-se, às tardes, em seu refúgio particular e lá permanecia horas a fio. Não atendia a ninguém. Mergulhava em seus segredos e ali ficava horas a fio. Quantas lembranças aquele quarto a conduzia ao passado longínquo.

Olhou para a caixa já guardada há bastante tempo, e segurou-a temerosa. Teria que ser rápida. Sua amiga pedira-lhe que levasse seu bauzinho, assim apelidara a caixa, abarrotada de seus mistérios de mulher.
Sentir a nostalgia que o ambiente transmitia, depois de tanto tempo, fê-la tentar compreender as razões pelas quais sua amiga prezava aquele recanto.... Quem sabe, nem que fosse por um tempo efêmero, nele sentia-se mais próxima de sua perdida juventude.

Ao chegar, olhou e viu a mulher. Enterneceu-se por sua incansável serenidade e fundiu-se num olhar complacente. Sucumbida pela imensa ternura, num gesto de intimidade afagou- lhe a cabeça e beijou sua testa. Entregou a caixa e foi saindo do quarto sem despedidas, deixando-a com suas recordações. Era o momento dela, somente dela. Pensara com compreensão.
 Quando de súbito a amiga a chama. Volta-se surpreendida pelo tom enfático de sua voz. Neste instante ao vê-la, percebeu que algo estava para acontecer. Espera. Ansiedade. Surpresa. Sua amiga retira da caixa uma carta e a entrega. Recebe em silêncio. Com um gesto de ternura ela segura suas mãos e com um ar de cumplicidade ela volta a deitar-se em abandono.
Naquele espaço impregnado de história, de intimidade abriu a carta. Perplexa leu uma confissão. A narrativa de uma mulher que ao longo dos anos sentira o medo. Vivera com o terror, o pânico, amedrontada por um homem que a estuprara e que a ameaçara sua família, caso ela contasse.
Foram dias de sofrimento e dor. Omitira o caso. 40 anos de silêncio e vergonha. Nunca, ninguém soubera. Só hoje resolveu mostrar o conteúdo da carta. Não queria ir embora sem contar o que acontecera, nem que fosse para continuar guardando o terrível segredo, mas dividiria com alguém e aliviaria o seu fardo de anos e poderia ir em paz. Este homem era o melhor amigo do pai de sua amiga. Ao terminar de ter a carta ela suplica a Márcia que  mantivesse o segredo. Lamentou ter dividido, mas precisava desabafar com alguém a dor que a sufocara por tanto tempo. Sentiu-se aliviada, muito embora o silencio constrangedor a tenha  consumido lentamente.
Ela partira 5 meses depois!
            Márcia chorou copiosamente. Manteve o sigilo.
            Que desperdício! Não se fizera justiça.
           A impunidade reinava nas lembranças de sua amiga.

            

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Sou uma jovem senhora que gosta de olhar o mundo de um jeito diferente, buscando encontrar o indecifrável, o indescritível, o inusitado, bem como as coisas simples e belas da vida.