O RITUAL
Regina Barros Leal
O portão de ferro abrindo-se. As pessoas
chegando...O dia começara. Eram 8 horas da manhã. De cada um que entrava,
ouviam-se variados cumprimentos: Oi! Bom dia! Olá! Como vai? ... E outras,
apenas manifestando gestos de aceno com as mãos, movimentos com o corpo
inteiro, ora harmoniosos, ora desajeitados.... Elas encontravam um jeito
peculiar de expressar sua chegança.
Durante um determinado tempo observei, espreitei, e, aos
poucos, fui me envolvendo com a atmosfera intrigante, vivenciando intensamente
a experiência. Dei-me conta das expressões dos que chegavam: rostos alegres,
sisudos, descontraídos e alguns ansiosos.... Outros rostos fechados e
impenetráveis, alguns carregando um certo ar de cansaço, como quem passara uma
noite insone. Percebi, outrossim,
trejeitos de quem acordou cedo e já fizera um montão de coisas e ao chegar,
rapidamente, procurava assento, soltando o corpo pesadamente. À medida que ia
aprofundado o meu olhar curioso, vi gestos familiares, reconheci hábitos e
manifestações humanas, mesmo porque o rito do iniciar, do começar o dia,
acontece em todos os lugares, embora em tempo, em cantos e formas culturalmente
diversas.
Remeto-me ao passado. Revivi também o amanhecer no casarão....
Que lembranças! O galo cantando anunciando o amanhecer; o cheiro de leite
mugido, o barulho dos patos no tanque ao lado, as portas e as janelas sendo
abertas, deixando o sol entrar e banhar o ambiente da energia do calor matinal.
Grandes e pesadas portas abrindo-se para dar passagem ao dia que chegava. Uma
prática cotidiana inconfundível!
Meus pais, embora urbanizados pelo
tempo na cidade e pela contenda diária, não deixaram de cultivar os hábitos do
campo e conseguiram mantê-los em família. Recordo-me do café da manhã: uma mesa
sempre farta de cuscuz, bolo de milho, canjica, queijo, pamonha, leite fresco
bem-fervido e a coalhada que meu pai não dispensava de sua primeira refeição. E
o café! Ah! Um café gostoso, torrado no pilão! Ainda consigo sentir aquele especial
cheiro que invadia o casarão.
Na
cozinha espaçosa, no grande fogão, as grandes chaleiras fervendas. Os panos
limpos de coar café, segurados por pequenas varetas de madeira roliça, eram
arrumados de um jeito especial, colocados dentro de uma panela para não se
sujarem. Questão de zelo e higiene! Muitos dos que lá trabalhavam faziam o
desjejum no casarão.
No
quintal, o canto dos pássaros. A beleza das plantas orvalhadas... Era a
natureza que cumprimentava a humanidade. O grande quintal era um local
prazeroso, com frutas variadas: seriguela, caju, mamão, coco, banana prata,
goiaba e outras mais.
Além disso, tínhamos duas vacas, dois
bezerros e o mais curioso era ao amanhecer o dia, a criançada, cada um com um
copo de alumínio (gravado o nome), esperando a sua vez para tomar o leite
mugido. Obrigação. Meus irmãos e primos, tanto quanto eu, não gostávamos da
ordem paterna. Ali estávamos postados na fila do leite. Essa cena se faz
nitidamente presente em minha memória.
Consigo,
ainda, com nitidez, rever as imagens daquelas manhãs.
Compondo o quadro, as moças trabalhadeiras, pois eram umas cinco, já de
vassouras nas mãos e aventais coloridos se espalhavam pelo casarão iniciando as
suas atividades domésticas. Em cima de uma mesa redonda, com tampa de mármore e
pés de ferro e a pintura de duas negras de tranças amarradas com fitas coloridas,
colocavam-se grandes tachos de cobre cheios de goiabas brancas e vermelhas,
devidamente separadas e descascadas. Um ritual semanal, os preparativos.
Depois, no pátio ao lado, os grandes tachos
eram colocados em fogões de carvão, improvisados para a feitura do doce. Jamais
esquecerei as borbulhas do doce cozinhando e as enormes colheres de pau
manuseadas pelas meninas em gestos circulares. O aroma agradável! Olho, e
visualizo a imagem da jeitosa Justina: moça branca, bonita, uma das
responsáveis pela cozinha. Grata imagem de um tempo que se foi!
Minha mãe, com seu jeito manso, porém firme,
coordenava todos no começo do dia. No espaçoso quarto da casa, organizadas
impecavelmente em cima da cama de casal, encontravam-se as roupas de meu pai:
camisas, gravatas, meias, lenços de linho branco dentre outros acessórios. Ao
lado da cama, os sapatos, quase todos pretos, estavam sempre bem lustrados. Meu
pai era um homem franzino, pequeno, mas, elegante e vaidoso. Tudo lhe era dado.
Minha mãe, a prestimosa mulher, fazia-lhe festas e gentilezas. Era um homem
especial! Na mesa, o peito de frango, aliás, os melhores pedaços, sempre lhe
foram reservados. Tudo nos parecia natural e aceitável. Era o chefe da casa.
E a
grande mesa redonda! Revolucionária para a época, porque tinha um expositor
giratório. Não pedíamos os pratos e bandejas de comida, apenas rodávamos a
redonda tábua giratória e lá estavam os quitutes de Justina. Na hora do almoço,
a atenção respeitosa, a famosa hora da conversa, da prestação de contas, das
novidades do dia, das traquinagens da criançada, inclusive. Um ritual familiar
inesquecível.
Revejo, também, o pátio avarandado. Naquele lugar, tão
cuidadosamente construído, armávamos redes, jogávamos damas, dançávamos
quadrilha, e brincávamos de tudo que pertencia ao nosso universo lúdico. Belas
recordações!
De repente, alguém me
chama:
- A
reunião vai começar, você não vem?
- Claro
que vou. Respondi à minha atenciosa e pequenina amiga.
Levantei-me, e segurando
os meus alfarrábios, fui caminhando lentamente para a sala. Todos já estavam
acomodados: os que chegaram entreolhavam-se e acolhiam a pequena senhora, a
intrusa do dia. Mas, por ter sido bem-recebida, compartilhei. Não sei ainda por
que... mas senti-me estranha naquela manhã...
Daí, resolvi escrever.