Silêncio no casarão. Tínhamos ido
repartir os objetos: porcelanas, lustres pintados. Ah! Aquela mesinha de vidro.
Telefones antigos, retratos, espelhos, cadeiras, dentre outros, que fizeram
parte de nossa história. Estávamos desajeitados. A ampla sala, palco de festas
e reuniões, desnudada, refletia o abandono. O casarão tinha sido comprado e
certamente seria demolido.
Sentamos e olhamo-nos como que perguntando por
onde começar. Um silêncio... Marejado de
reminiscências. Depois, como que para quebrar o gelo, iniciamos a partilha.
Contingência. Tivemos que nos desfazer do casarão. Era um contentamento miúdo,
misturado à melancolia, mas sutilmente afugentada diante da satisfação de
outras necessidades resolvidas.
Enquanto
meus irmãos conversavam, subi ao meu antigo quarto, colcha branca, protetora e
repousante, refúgio de júbilo e aflições não ditas. As janelas descortinadas
deixavam entrar os últimos raios de sol daquele fim de tarde. Recordei
passagens singulares. Comecei a rebuscar minhas lembranças infantis: estórias
povoadas de fadas, bruxas, princesas, piratas, fantasmas. Evocações permeadas
de uma alegria medrosa. Coisas de criança. Buliçosamente, entrevi meu passado
povoado de fantasias.
Insisti.
Reencontrei minha infância, saudável, naquele casarão, com minha família, onde
vivi minhas experiências de criança privilegiada. Não faltavam chocolates,
doces, brinquedos, nem tampouco amor. Que lembranças! Jogando “mãos ao alto”
com meus irmãos, brincando de adulto, organizando peças de teatro. Eu, então,
alegrava-me ao cantar. Naquela época, meus pais armavam um palco numa garagem
bastante espaçosa, com cortina de veludo vermelho, tablado, tudo a que se tinha
direito, e convidavam a família. Meus tios elogiavam a atuação dos seus
pequenos artistas, alguns meios atrapalhados, pequenos iniciantes, amadores.
Era um momento mágico, onde a fantasia corria nos campos da imaginação. Quase
indescritível.
Como saboreava aquelas tardes
compridas que se encontravam com a noite que chegava de mansinho! O entardecer. Recordo-as, nitidamente. Foram de uma beleza, ímpar porque permeados
pela magia dos sonhos e dos folguedos infantis. Rir, saltar, correr, pular de
corda, andar de bicicleta... Tudo isso naquele espaço enorme onde meu pai
construíra o casarão. Ah! Meu pai. Homem inteligente. Personalidade marcante.
Sujeito avançado, criativo, lépido e determinado. Um visionário. Seu legado de
força influenciaria nossas vidas. Ele se eternizou em cada um de nós.
As recordações brotam. Meus 15
anos! Adolescência. Os fortuitos namoros, as mãos trêmulas, os medos, as
primeiras descobertas, o primeiro beijo. As serenatas! As canções apaixonadas e os corações
saltitando sob as camisolas de seda. Janelas descerradas e olhares de paixão.
Ali escutávamos os trovadores juvenis. Minha mãe, doce criatura, compartilhava
de nossas emoções. Sua presença confundia-se com a magia da noite. Afetuosa
mulher
18 anos! O caminho das rosas que perfumam e como
pássaros, ferem as almas com seus voos vazantes. Descobertas adultas e corpo de
mulher. Pensamentos e sonhos imprudentes!
Tempo dos ventos de verão, das tormentas, do paraíso florido nos sonhos
fartos e generosos. Os namoros povoavam meus devaneios, Ilusões. Mas a efemeridade os jogou nas fendas dos
sonhos. Lembrou Victor Hugo: “Sede
como os pássaros que, ao pousarem um instante sobre ramos muito leves,
sentem-nos ceder, mas cantam! Eles sabem que possuem asas”. Iria voar nas
asas das quimeras e adentrar os momentos de fragilidade e transcender o
cotidiano na preciosa imaginação e na singular fantasia.
Na penumbra do quarto, repassei minha vida e
chorei! Não só pela despedida do
casarão, também no adeus aos tropeços da meninada, as esgarçadas relações que
se diluíram na distância. Chorei os afetos perdidos, as intrigas não
resolvidas, os perdões esquecidos. Sorri, gargalhei com a primavera, com os
amores correspondidos, sorri com a chuva de prata dos dias de lua cheia em que
namorávamos escondidos, das sessões da tarde no Cine Atapu, os filmes dos
faroestes, os românticos, os épicos, e dos heróis. Ainda as novenas da Igreja
de Fátima e das missas assistidas. Éramos felizes.
Ouvi alguém me chamando:
- Lucia, estamos esperando, desça. Era
meu irmão mais velho. Senti sua voz trêmula, inconfundível. Ele sempre foi
emotivo.
- Já estou indo! Respondi um pouco
desorientada, face ao brusco retorno ao presente.
Fui descendo a escada de mármore. Era
tão bem cuidada por minha mãe! Aquele mármore branco, reluzente, já desfeito
pelo desgaste do desuso.
Olhei para todos e percebi o quão
estavam perturbados. Quem sabe, não fizeram o mesmo percurso? Meus irmãos,
crianças de outrora, companheiros de brincadeiras. Hoje, parceiros da saudade.
Saímos devagar. Ronceiros. Despedidas
murmuradas. Rostos entristecidos. Gestos vagarosos.
Chegando à casa fui guardar os
objetos, testemunhos silenciosos de minha história. Não foi fácil vender o
casarão, herança de nossos pais, local vivo de muitas recordações. Nós,
inquilinos do passado, pagamos um melancólico tributo pela nossa despedida.
Nessa noite, quase não dormi.