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sábado, 12 de novembro de 2016

O casarão revisitado


O Casarão revisitado
                                 Regina Barros Leal
                                                          
            Silêncio no casarão. Tínhamos ido repartir os objetos: porcelanas, lustres pintados. Ah! Aquela mesinha de vidro. Telefones antigos, retratos, espelhos, cadeiras, dentre outros, que fizeram parte de nossa história. Estávamos desajeitados. A ampla sala, palco de muitos encontros, desnudada, refletia o abandono. O casarão tinha sido comprado e certamente seria demolido.
             Sentamos e olhamo-nos como que perguntando por onde começar.  Um tempo silencioso... Marejado de reminiscências. Depois, como que para quebrar o gelo, iniciamos a partilha. Contingência. Tivemos que nos desfazer do casarão. Era uma satisfação miúda, misturada à melancolia, mas sutilmente afugentada pela satisfação de outras necessidades resolvidas.
            Enquanto meus irmãos conversavam, subi ao meu antigo quarto, colcha branca, protetora e repousante, refúgio de júbilo e aflições não ditas. As janelas descortinadas deixavam entrar os últimos raios de sol daquele fim de tarde. Recordei passagens singulares Comecei a rebuscar minhas lembranças infantis: estórias povoadas de fadas, bruxas, princesas, piratas, fantasmas. Evocações permeadas de uma alegria medrosa. Coisas de criança. Buliçosamente, entrevi meu passado povoado de fantasias.
            Insisti. Reencontrei minha infância, saudável, naquele casarão, com minha família, onde vivi minhas experiências de criança privilegiada. Não faltavam chocolates, doces, brinquedos, nem tampouco amor. Que lembranças! Jogando “mãos ao alto” com meus irmãos, brincando de adulto, organizando peças de teatro. Eu, então, alegrava-me muito ao cantar. Naquela época, meus pais armavam um palco numa garagem bastante espaçosa, com cortina de veludo vermelho, tablado, tudo a que se tinha direito, e convidavam a família. Meus tios elogiavam a atuação dos seus pequenos artistas, alguns meio atrapalhados, pequenos iniciantes amadores. Era um momento mágico onde a fantasia corria pelos campos da imaginação. Quase indescritível.
            Como saboreava aquelas tardes compridas que se encontravam com a noite que chegava de mansinho! O entardecer.  Recordo-as, nitidamente.  Foram de uma beleza, ímpar porque permeados pela magia dos sonhos e dos folguedos infantis. Rir, saltar, correr, pular de corda, andar de bicicleta... Tudo isso naquele espaço enorme onde meu pai construíra o casarão. Ah! Meu pai. Homem inteligente. Personalidade marcante. Sujeito avançado, criativo, lépido e determinado. Seu legado de força influenciaria nossas vidas para sempre. Ele se eternizou em cada um de nós.
            As recordações brotam. Meus 15 anos! Adolescência. Os fortuitos namoros, as mãos trêmulas, os medos, as primeiras descobertas, o primeiro beijo. As serenatas!  As canções apaixonadas e os corações saltitando sob as camisolas de seda. Janelas descerradas e olhares de paixão. . Ali escutávamos os trovadores juvenis Minha mãe, doce criatura, compartilhava de nossas emoções. Sua presença confundia-se com a beleza da noite. Afetuosa mulher
             18 anos! O caminho das rosas que perfumam e ferem as almas com seus voos vazantes. Descobertas adultas e corpo de mulher. Pensamentos e sonhos impudentes!  Tempo dos ventos de verão, das tormentas, do paraíso florido pelos sonhos fartos e generosos. Fred, Marcelo povoavam meus devaneios. Mas a efemeridade os jogou pelas fendas do tempo.  Lembrou Victor Hugo: “Sede como os pássaros que, ao pousarem um instante sobre ramos muito leves, sentem-nos ceder, mas cantam! Eles sabem que possuem asas”. Iria voar nas asas das quimeras e adentrar os momentos de fragilidade e transcender o cotidiano na preciosa imaginação e na singular fantasia. 
             Na penumbra do quarto, repassei minha vida e chorei!  Não só pela despedida do casarão, mas pelo adeus ao tempo, aos tropeços da meninada, as esgarçadas relações que se diluíram na distancia. Chorei pelos amores perdidos, as intrigas não resolvidas, os perdões esquecidos. Entretanto sorri, gargalhei com a primavera dos amores correspondidos, sorri com a chuva de prata dos dias de lua cheia em que namorávamos escondidos, das sessões da tarde, das missas assistidas. Éramos felizes.
            Ouvi alguém me chamando:
-           Lucia, estamos esperando, desça. Era meu irmão mais velho. Senti sua voz trêmula, inconfundível. Ele sempre foi muito emotivo.
-           Já estou indo! Respondi um pouco desorientada pelo brusco retorno ao presente.
            Fui descendo a escada de mármore. Era tão bem cuidada por minha mãe! Aquele mármore branco, reluzente, já desfeito pelo desgaste do desuso.
            Olhei para todos e percebi o quão estavam perturbados. Quem sabe, não fizeram o mesmo percurso? Meus irmãos, crianças de outrora, companheiros de brincadeiras. Hoje, parceiros da saudade.
            Saímos devagar. Ronceiros. Despedidas murmuradas. Rostos entristecidos. Gestos vagarosos.
            Chegando a casa fui guardar os objetos, testemunhos silenciosos de minha história. Não foi fácil vender o casarão, herança de nossos pais, local vivo de muitas recordações. Nós, inquilinos do passado, pagamos um melancólico tributo pela nossa despedida.

             Nessa noite, quase não dormi.  

Quem sou eu

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Fortaleza, Ce, Brazil
Sou uma jovem senhora que gosta de olhar o mundo de um jeito diferente, buscando encontrar o indecifrável, o indescritível, o inusitado, bem como as coisas simples e belas da vida.