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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O CASARÃO REVISITADO

 

 


                             

                                                

          Silêncio no casarão. Tínhamos ido repartir os objetos: porcelanas, lustres pintados. Ah! Aquela mesinha de vidro. Telefones antigos, retratos, espelhos, cadeiras, dentre outros, que fizeram parte de nossa história. Estávamos desajeitados. A ampla sala, palco de festas e reuniões, desnudada, refletia o abandono. O casarão tinha sido comprado e certamente seria demolido.

           Sentamos e olhamo-nos como que perguntando por onde começar.  Um silêncio... Marejado de reminiscências. Depois, como que para quebrar o gelo, iniciamos a partilha. Contingência. Tivemos que nos desfazer do casarão. Era um contentamento miúdo, misturado à melancolia, mas sutilmente afugentada diante da satisfação de outras necessidades resolvidas.

          Enquanto meus irmãos conversavam, subi ao meu antigo quarto, colcha branca, protetora e repousante, refúgio de júbilo e aflições não ditas. As janelas descortinadas deixavam entrar os últimos raios de sol daquele fim de tarde. Recordei passagens singulares. Comecei a rebuscar minhas lembranças infantis: estórias povoadas de fadas, bruxas, princesas, piratas, fantasmas. Evocações permeadas de uma alegria medrosa. Coisas de criança. Buliçosamente, entrevi meu passado povoado de fantasias.

          Insisti. Reencontrei minha infância, saudável, naquele casarão, com minha família, onde vivi minhas experiências de criança privilegiada. Não faltavam chocolates, doces, brinquedos, nem tampouco amor. Que lembranças! Jogando “mãos ao alto” com meus irmãos, brincando de adulto, organizando peças de teatro. Eu, então, alegrava-me ao cantar. Naquela época, meus pais armavam um palco numa garagem bastante espaçosa, com cortina de veludo vermelho, tablado, tudo a que se tinha direito, e convidavam a família. Meus tios elogiavam a atuação dos seus pequenos artistas, alguns meios atrapalhados, pequenos iniciantes, amadores. Era um momento mágico, onde a fantasia corria nos campos da imaginação. Quase indescritível.

          Como saboreava aquelas tardes compridas que se encontravam com a noite que chegava de mansinho! O entardecer.  Recordo-as, nitidamente.  Foram de uma beleza, ímpar porque permeados pela magia dos sonhos e dos folguedos infantis. Rir, saltar, correr, pular de corda, andar de bicicleta... Tudo isso naquele espaço enorme onde meu pai construíra o casarão. Ah! Meu pai. Homem inteligente. Personalidade marcante. Sujeito avançado, criativo, lépido e determinado. Um visionário. Seu legado de força influenciaria nossas vidas. Ele se eternizou em cada um de nós.

            As recordações brotam. Meus 15 anos! Adolescência. Os fortuitos namoros, as mãos trêmulas, os medos, as primeiras descobertas, o primeiro beijo. As serenatas!  As canções apaixonadas e os corações saltitando sob as camisolas de seda. Janelas descerradas e olhares de paixão. Ali escutávamos os trovadores juvenis. Minha mãe, doce criatura, compartilhava de nossas emoções. Sua presença confundia-se com a magia da noite. Afetuosa mulher

           18 anos! O caminho das rosas que perfumam e como pássaros, ferem as almas com seus voos vazantes. Descobertas adultas e corpo de mulher. Pensamentos e sonhos imprudentes!  Tempo dos ventos de verão, das tormentas, do paraíso florido nos sonhos fartos e generosos. Os namoros povoavam meus devaneios, Ilusões.  Mas a efemeridade os jogou nas fendas dos sonhos.  Lembrou Victor Hugo: “Sede como os pássaros que, ao pousarem um instante sobre ramos muito leves, sentem-nos ceder, mas cantam! Eles sabem que possuem asas”. Iria voar nas asas das quimeras e adentrar os momentos de fragilidade e transcender o cotidiano na preciosa imaginação e na singular fantasia. 

           Na penumbra do quarto, repassei minha vida e chorei!  Não só pela despedida do casarão, também no adeus aos tropeços da meninada, as esgarçadas relações que se diluíram na distância. Chorei os afetos perdidos, as intrigas não resolvidas, os perdões esquecidos. Sorri, gargalhei com a primavera, com os amores correspondidos, sorri com a chuva de prata dos dias de lua cheia em que namorávamos escondidos, das sessões da tarde no Cine Atapu, os filmes dos faroestes, os românticos, os épicos, e dos heróis. Ainda as novenas da Igreja de Fátima e das missas assistidas. Éramos felizes.

          Ouvi alguém me chamando:

-         Lucia, estamos esperando, desça. Era meu irmão mais velho. Senti sua voz trêmula, inconfundível. Ele sempre foi emotivo.

-         Já estou indo! Respondi um pouco desorientada, face ao brusco retorno ao presente.

          Fui descendo a escada de mármore. Era tão bem cuidada por minha mãe! Aquele mármore branco, reluzente, já desfeito pelo desgaste do desuso.

          Olhei para todos e percebi o quão estavam perturbados. Quem sabe, não fizeram o mesmo percurso? Meus irmãos, crianças de outrora, companheiros de brincadeiras. Hoje, parceiros da saudade.

          Saímos devagar. Ronceiros. Despedidas murmuradas. Rostos entristecidos. Gestos vagarosos.

          Chegando à casa fui guardar os objetos, testemunhos silenciosos de minha história. Não foi fácil vender o casarão, herança de nossos pais, local vivo de muitas recordações. Nós, inquilinos do passado, pagamos um melancólico tributo pela nossa despedida.

           Nessa noite, quase não dormi. 

 

 

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Fortaleza, Ce, Brazil
Sou uma jovem senhora que gosta de olhar o mundo de um jeito diferente, buscando encontrar o indecifrável, o indescritível, o inusitado, bem como as coisas simples e belas da vida.