O CASARÃO
Regina Barros Leal
Silêncio no casarão. Tínhamos ido repartir os objetos:
porcelanas, lustres antigos pintados. Ah! aquela mesinha de vidro... telefones
antigos, retratos, espelhos, cadeiras, dentre outros, que fizeram parte de
nossa história.Estávamos desajeitados. A
ampla sala, palco de muitos encontros, desnudada, refletia o abandono. O
casarão tinha sido comprado e certamente
seria demolido.
Sentamos e
olhamo-nos como que perguntando por onde
começar. Um tempo silencioso... marejado de reminiscências. Depois, como que para
quebrar o gelo, iniciamos a partilha. Contingência. Tivemos que nos desfazer do
casarão. Era uma satisfação miúda, misturada à melancolia, mas sutilmente
afugentada pela satisfação de outras necessidades resolvidas.
Enquanto
meus irmãos conversavam, subi ao meu antigo quarto, colcha branca, protetora e
repousante, refúgio de júbilo e aflições não ditas. As janelas descortinadas
deixavam entrar os últimos raios de sol daquele fim de tarde. Recordei-me de passagens
interessantes. Comecei a rebuscar minhas lembranças infantis: estórias povoadas
de fadas, bruxas, princesas, piratas, fantasmas. Evocações permeadas de uma
alegria medrosa. Coisas de criança.
Buliçosamente, entrevi meu passado povoado de recordações...
Insisti.
Reencontrei minha infância, saudável, naquele casarão, com minha família, onde
vivi minhas experiências de criança privilegiada. Não faltavam chocolates,
doces, pirulitos, brinquedos, nem tampouco amor. Que lembranças! Jogando bila
com meus irmãos, brincando de guisado, organizando as peças de teatro. Eu,
então, alegrava-me muito ao cantar.
Naquela época, meus pais armavam um palco numa garagem bastante espaçosa, com
cortina de veludo vermelho, tablado,
tudo a que se tinha direito, e convidavam
a família. Meus tios elogiavam a atuação
dos seus pequenos artistas, alguns meio atrapalhados.
Como saboreava daquelas tardes compridas que se
encontravam com a noite que chegava de mansinho! Recordo-as, nitidamente. Foram
de uma beleza, ímpar porque permeados pela magia dos sonhos e das
folguedos infantis. Rir, saltar, correr, pular de corda, andar de bicicleta...
tudo isso naquele espaço enorme onde meu pai construíra o nosso lar. Ah! Meu
pai. Homem inteligente. Personalidade marcante. Sujeito avançado, criativo,
lépido e
determinado. Seu legado de força influenciaria nossas vidas para sempre.
Ele se eternizou em cada um de nós.
As recordações brotam. Meus 15
anos! Adolescência. Os fortuitos namoros, as mãos trêmulas, os medos, as
primeiras descobertas, o primeiro beijo. 18 anos. As serenatas! Minha mãe, doce criatura, mulher sensível, compartilhava
intensamente os nossos devaneios juvenis. Quando íamos às tertúlias, abria a
porta devagarinho, serenamente, na ponta dos pés, para não acordar meu pai. Em silêncio, ela
nos guiava e nos acompanhava para saber das novidades. A ternura espalhada por
sua presença, ora sentida, confundia-se com a beleza da noite nascida. Nossa
mãe companheira brindou-nos com sua sensatez e com seu carinho. Doce
mulher! Generosa e amiga de todos,
principalmente dos que a ajudavam nas tarefas domésticas.
Na penumbra do
quarto, repassei os divertidos finais de
semana ao chegarem os primos. Eram
muitos. Ainda mais os vizinhos, nossos
companheiros de algazarra. Jogávamos ping pong, voleibol, íamos à praia, ao cinema. Que folia!
Vizinho ao casarão havia o cinema. Lembro-me das grandes
filas, dos filmes, como: O Ébrio; Tarzan, o Rei das Selvas; Por Quem os Sinos
Dobram; Os Três Mosqueteiros; além das famosas sessões de faroeste, dos longas
metragens produzidos pela Atlântida,
reino de Grande Otelo, Oscarito,
Adelaide Chioso e Emilinha Borba. Como me lembro do escurinho do cinema, dos
intervalos, dos namoricos!
Éramos felizes.
Ouvi alguém me chamando:
- Minha irmã, desça, estamos de saída. Era meu irmão mais
velho. Senti
sua voz trêmula, inconfundível. Ele
sempre foi muito emotivo.
- Já estou indo... respondi um pouco desorientada pelo
brusco retorno ao presente.
Fui descendo a escada. Era muito bem cuidada por minha
mãe.
Olhei para todos e percebi o quão estavam perturbados.
Quem sabe, não fizeram o mesmo percurso? Meus irmãos, crianças de outrora,
companheiros de brincadeiras. Hoje, parceiros da saudade.
Saímos devagar. Ronceiros. Despedidas murmuradas.Rostos
entristecidos. Gestos vagarosos.
Chegando a casa fui guardar os objetos, testemunhos
silenciosos de minha história. Não foi fácil vender o casarão, portentosa
herança de nossos pais, local vivo de muitas recordações. Nós, inquilinos do
passado, pagamos um melancólico tributo
pela nossa despedida.
Nessa noite, quase
não dormi.
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