Postagens populares

Seguidores

sexta-feira, 26 de julho de 2013

O  CASARÃO
                                    Regina Barros Leal
                                                          
            Silêncio no casarão. Tínhamos ido repartir os objetos: porcelanas, lustres antigos pintados. Ah! aquela mesinha de vidro... telefones antigos, retratos, espelhos, cadeiras, dentre outros, que fizeram parte de nossa história.Estávamos  desajeitados. A ampla sala, palco de muitos encontros, desnudada, refletia o abandono. O casarão tinha sido comprado e certamente  seria demolido.
             Sentamos e olhamo-nos como que perguntando por onde  começar.  Um  tempo silencioso... marejado  de reminiscências. Depois, como que para quebrar o gelo, iniciamos a partilha. Contingência. Tivemos que nos desfazer do casarão. Era uma satisfação miúda, misturada à melancolia, mas sutilmente afugentada pela satisfação de outras necessidades resolvidas.

            Enquanto meus irmãos conversavam, subi ao meu antigo quarto, colcha branca, protetora e repousante, refúgio de júbilo e aflições não ditas. As janelas descortinadas deixavam entrar os últimos raios de sol daquele fim de tarde. Recordei-me de passagens interessantes. Comecei a rebuscar minhas lembranças infantis: estórias povoadas de fadas, bruxas, princesas, piratas, fantasmas. Evocações permeadas de uma alegria  medrosa. Coisas de criança. Buliçosamente, entrevi meu passado povoado de recordações...
            Insisti. Reencontrei minha infância, saudável, naquele casarão, com minha família, onde vivi minhas experiências de criança privilegiada. Não faltavam chocolates, doces, pirulitos, brinquedos, nem tampouco amor. Que lembranças! Jogando bila com meus irmãos, brincando de guisado, organizando as peças de teatro. Eu, então, alegrava-me muito  ao cantar. Naquela época, meus pais armavam um palco numa garagem bastante espaçosa, com cortina de veludo vermelho, tablado,  tudo a que se tinha direito,  e convidavam a família. Meus tios elogiavam a atuação  dos seus pequenos artistas, alguns meio atrapalhados. 
            Como saboreava daquelas tardes compridas que se encontravam com a noite que chegava de mansinho! Recordo-as, nitidamente.  Foram  de uma beleza, ímpar porque permeados pela magia dos sonhos e das folguedos infantis. Rir, saltar, correr, pular de corda, andar de bicicleta... tudo isso naquele espaço enorme onde meu pai construíra o nosso lar. Ah! Meu pai. Homem inteligente. Personalidade marcante. Sujeito avançado, criativo, lépido  e  determinado. Seu legado de força influenciaria nossas vidas para sempre. Ele se eternizou em cada um de nós.
            As recordações brotam. Meus 15 anos! Adolescência. Os fortuitos namoros, as mãos trêmulas, os medos, as primeiras descobertas, o primeiro beijo. 18 anos. As serenatas! Minha mãe,  doce criatura, mulher sensível, compartilhava intensamente os nossos devaneios juvenis. Quando íamos às tertúlias, abria a porta devagarinho, serenamente, na ponta dos pés,  para não acordar meu pai. Em silêncio, ela nos guiava e nos acompanhava para saber das novidades. A ternura espalhada por sua presença, ora sentida, confundia-se com a beleza da noite nascida. Nossa mãe companheira brindou-nos com sua sensatez e com seu carinho. Doce mulher!  Generosa e amiga de todos, principalmente dos que a ajudavam nas tarefas domésticas.   
             Na penumbra do quarto, repassei os divertidos  finais de semana  ao chegarem os primos. Eram muitos. Ainda  mais os vizinhos, nossos companheiros de algazarra. Jogávamos ping pong, voleibol,  íamos à praia, ao cinema. Que folia!
            Vizinho ao casarão havia o cinema. Lembro-me das grandes filas, dos filmes, como: O Ébrio; Tarzan, o Rei das Selvas; Por Quem os Sinos Dobram; Os Três Mosqueteiros; além das famosas sessões de faroeste, dos longas metragens produzidos pela  Atlântida, reino de  Grande Otelo, Oscarito, Adelaide Chioso e Emilinha Borba. Como me lembro do escurinho do cinema, dos intervalos, dos namoricos! 
Éramos felizes.
            Ouvi alguém me chamando:
-           Minha irmã, desça, estamos de saída. Era meu irmão mais velho. Senti     
      sua voz trêmula, inconfundível. Ele sempre foi muito emotivo.
-           Já estou indo... respondi um pouco desorientada pelo brusco retorno ao presente.
            Fui descendo a escada. Era muito bem cuidada por minha mãe.
            Olhei para todos e percebi o quão estavam perturbados. Quem sabe, não fizeram o mesmo percurso? Meus irmãos, crianças de outrora, companheiros de brincadeiras. Hoje, parceiros da saudade.

            Saímos devagar. Ronceiros. Despedidas murmuradas.Rostos entristecidos. Gestos vagarosos.
            Chegando a casa fui guardar os objetos, testemunhos silenciosos de minha história. Não foi fácil vender o casarão, portentosa herança de nossos pais, local vivo de muitas recordações. Nós, inquilinos do passado, pagamos um  melancólico tributo pela nossa despedida.

             Nessa noite, quase não dormi. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Quem sou eu

Minha foto
Fortaleza, Ce, Brazil
Sou uma jovem senhora que gosta de olhar o mundo de um jeito diferente, buscando encontrar o indecifrável, o indescritível, o inusitado, bem como as coisas simples e belas da vida.