LEMBRANÇAS
Regina
Barros Leal
Márcia
procurava a caixa onde sua amiga, com muito zelo, mantinha as antigas cartas e
suas pequenas lembranças. Remexia as gavetas da pesada cômoda que estava na família
há anos. Encontrara papéis amarelecidos e algumas peças de roupa íntima já
gastas pelo tempo. Fatigada, quedou-se por um instante! Placidamente divagou o
olhar pelo quarto. Deu-se conta do nostálgico local. Era um ambiente incomum. As paredes eram
revestidas de papel parede listrado e entremeado de pequenas rosas. O colorido
já não tinha a mesma tonalidade, todavia expressava uma singular aparência. Os
lustres, pintados à mão, desciam majestosos pendurados em correntes douradas.
Os móveis, em estilo colonial, de cor escura, davam um toque de austeridade ao lugar.
Era o antigo quarto da bisavó, que teria sido ocupado pela avó e atualmente, o
recanto de sua amiga, com seus 72 anos de idade, acometida por uma doença
terminal. O ambiente revelava as marcas do tempo traspassado de subjetividade
feminina.
Envolvida por esse ambiente
que abrigava diversas histórias familiares, sentou-se à penteadeira e viu uma
escova oval, banhada de prata. Relembrou sua adolescência quando se esmerava no
trato de seus cabelos longos. Sentia prazer em penteá-los, especialmente, para
ir às tertúlias. Que nostalgia! As tertúlias, o som do pistom e a pista de
dança! As luzes no salão de festa! Lembrava-se do rito da espera da festa, os
preparativos, dos vestidos de tafetá, dos cochichos, dos jogos de sedução da
época. Tudo era tão fascinante!
Entretanto,
rompendo a cortina do tempo, voltou a rebuscar os armários. Finalmente! Eis a
caixa que ela pedira.. Tamanho médio, vermelha, com rosas amarelas e enfeitada
com um laço de fita de cor branca. Dentro,
cartas, cartões, fotografias, bilhetes, miúdos adereços. Sentiu uma inefável
sensação. Pudera! Mergulhando no tempo de outrem.... Quem sabe? Estórias
intercaladas de risos e lágrimas. Não sabia bem por que, mas teve a sensação de
estranhamento. Pareceu-lhe usurpar um templo, um espaço privado, intocável,
misterioso e repleto de segredos. Sentiu-se invasora. Retrocedeu. Imaginou a
bisavó da amiga, seus amores, seus medos, sua polidez. Lembrou-se de sua avó,
uma velha senhora, de olhos azuis, pequenina, cabelos grisalhos, de feições
severas e gestos vagarosos. Pensou em sua mãe, curiosa, criativa, miúda,
romântica. Recolhia-se, às tardes, em seu refúgio particular e lá permanecia
horas a fio. Não atendia a ninguém. Mergulhava em seus segredos e ali ficava
horas a fio. Quantas lembranças aquele quarto a conduzia ao passado longínquo.
Olhou para a caixa já
guardada há bastante tempo, e segurou-a temerosa. Teria que ser rápida. Sua
amiga pedira-lhe que levasse seu bauzinho, assim apelidara a caixa, abarrotada
de seus mistérios de mulher.
Sentir a
nostalgia que o ambiente transmitia, depois de tanto tempo, fê-la tentar
compreender as razões pelas quais sua amiga prezava aquele recanto.... Quem
sabe, nem que fosse por um tempo efêmero, nele sentia-se mais próxima de sua
perdida juventude.
Ao chegar,
olhou e viu a mulher. Enterneceu-se por sua incansável serenidade e fundiu-se
num olhar complacente. Sucumbida pela imensa ternura, num gesto de intimidade
afagou- lhe a cabeça e beijou sua testa. Entregou a caixa e foi saindo do
quarto sem despedidas, deixando-a com suas recordações. Era o momento dela,
somente dela. Pensara com compreensão.
Quando de súbito a amiga a chama. Volta-se
surpreendida pelo tom enfático de sua voz. Neste instante ao vê-la, percebeu
que algo estava para acontecer. Espera. Ansiedade. Surpresa. Sua amiga retira
da caixa uma carta e a entrega. Recebe em silêncio. Com um gesto de ternura ela
segura suas mãos e com um ar de cumplicidade ela volta a deitar-se em abandono.
Naquele
espaço impregnado de história, de intimidade abriu a carta. Perplexa leu uma
confissão. A narrativa de uma mulher que ao longo dos anos sentira o medo.
Vivera com o terror, o pânico, amedrontada por um homem que a estuprara e que a
ameaçara sua família, caso ela contasse.
Foram
dias de sofrimento e dor. Omitira o caso. 40 anos de silêncio e vergonha.
Nunca, ninguém soubera. Só hoje resolveu mostrar o conteúdo da carta. Não
queria ir embora sem contar o que acontecera, nem que fosse para continuar
guardando o terrível segredo, mas dividiria com alguém e aliviaria o seu fardo
de anos e poderia ir em paz. Este homem era o melhor amigo do pai de sua amiga.
Ao terminar de ter a carta ela suplica a Márcia que mantivesse o segredo. Lamentou
ter dividido, mas precisava desabafar com alguém a dor que a sufocara por tanto
tempo. Sentiu-se aliviada, muito embora o silencio constrangedor a tenha consumido lentamente.
Ela
partira 5 meses depois!
Márcia
chorou copiosamente. Manteve o sigilo.
Que
desperdício! Não se fizera justiça.
A impunidade reinava nas lembranças de sua
amiga.