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sábado, 30 de agosto de 2014

LEMBRANÇAS


LEMBRANÇAS

 Regina Barros Leal

Márcia procurava a caixa onde sua mãe, com muito zelo, mantinha as antigas cartas e suas pequenas lembranças. Remexia as gavetas da pesada cômoda que pertencera a sua bisavó. Encontrara papéis amarelecidos  e algumas peças de roupa íntima já gastas pelo tempo. Exausta, quedou-se. Placidamente divagou o olhar pelo quarto. Deu-se conta do nostálgico local. As paredes eram revestidas de papel parede listrado e entremeado de pequenas rosas. O colorido já não tinha a mesma tonalidade, todavia expressava uma singular aparência. Os lustres, pintados à mão, desciam majestosos pendurados em correntes douradas. Os móveis, em estilo colonial, de cor escura, davam um toque de austeridade ao ambiente. Era o antigo quarto de sua bisavó, que teria sido ocupado por sua avó, atualmente, o recanto de sua mãe, já com seus 72 anos de idade. Tudo afinal revelava as marcas do tempo traspassado de subjetividade feminina.

Envolvida por esse lugar que abrigava diversas histórias familiares, sentou-se à penteadeira e viu uma escova oval, banhada de prata. De repente, relembrou sua adolescência quando se esmerava no trato de seus cabelos longos. Sentia prazer em  penteá-los, especialmente, para ir às tertúlias. Que nostalgia! As tertúlias, o som do pistom e a pista de dança! As luzes no salão de festa! Lembrava-se do rito da espera, dos preparativos, dos vestidos de tafetá, dos cochichos, dos jogos de sedução da época. Tudo era tão fascinante!

Entretanto, rompendo a cortina do tempo, voltou a rebuscar os armários. Finalmente! Eis a caixa. Tamanho médio, vermelha, com rosas amarelas e enfeitada com um laço de fita de cor branca. Dentro, cartas, cartões, fotografias, bilhetes, miúdos adereços. Sentiu uma inefável sensação. Pudera! mergulhando no tempo de outrem... Quem sabe? Histórias intercaladas de risos e lágrimas. Não sabia bem por que, mas teve a sensação de estranhamento. Pareceu-lhe usurpar um templo, um espaço privado, intocável, misterioso e repleto de segredos. Sentiu-se invasora. Retrocedeu. Imaginou sua bisavó, seus amores, seus medos, sua polidez. Sua domesticidade quieta, muda. Lembrou-se de sua avó, uma velha senhora, de olhos azuis, pequenina, cabelos grisalhos, de feições severas e gestos inquietos. Mulher vontadosa, guerreira, desbravadora. Orgulhosa. Pensou em sua mãe, curiosa, criativa, miúda, romântica. Uma excelente contadora de histórias. Recolhia-se, às tardes, naquele refúgio particular e lá permanecia horas a fio. Não atendia a ninguém, mergulhada em seus segredos. Quantas lembranças estavam contidas naquele quarto!

Olhou para a caixa já guardada há bastante tempo, e segurou-a temerosa. Teria que ser rápida. Sua mãe pedira-lhe que levasse seu bauzinho, assim apelidara a caixa, abarrotada de seus mistérios femininos .
Sentir a nostalgia que o ambiente transmitia, depois de tanto tempo,  fê-la tentar compreender as razões pelas quais sua mãe prezava aquele recanto... Quem sabe, nem que fosse por um tempo efêmero, nele sentia-se mais próxima de sua perdida juventude.


Ao chegar, olhou a mãe e viu a mulher. Enterneceu-se por sua incansável serenidade e fundiu-se num olhar complacente. Sucumbida pela imensa ternura, num gesto de intimidade, afagou-lhe a cabeça e beijou sua testa. Entregou a caixa e foi saindo do quarto sem despedidas, deixando-a com suas recordações. Quando, de súbito, sua mãe a chama. Volta-se, surpreendida pelo tom enfático de sua voz. Neste instante, ao vê-la, percebeu que algo estava para acontecer. Espera. Ansiedade. Surpresa. Sua mãe retira da caixa uma carta e a entrega. Recebe em silêncio. Com um gesto de ternura ela segura suas mãos e com um ar de cumplicidade volta a deitar-se em abandono. Assim, em silêncio, guardei o seu segredo.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A estréia de Gabriela

A  ESTRÉIA  DE  GABRIELA

                                                               Regina Barros Leal

                 Gabriela estava sempre cantando! No seu quarto, amplo e arejado, havia uma cadeira de balanço. Nela, passava parte do tempo cantarolando as mais variadas modinhas. 
                  Nancy morava com sua família. Estatura média, faceira, trabalhadora. Era uma morena de feições rudes, cabelos pretos compridos que ela arrumava, às vezes, em tranças untadas com um creme especial que, até hoje, nunca se soube exatamente o que era. Maria, a lavadeira, arriscava dizendo que era feito pela comadre Joana, com óleo de coco e canela.
                 Nancy tinha grandes e opulentos quadris e, ciente disso, requebrava sensualmente, provocando, por onde passava, piadas maliciosas, principalmente dos rapazes mais afoitos.
                 Quase todos os dias, ao escutar a menina cantando com sua vozinha afinada, dizia:
                -Olha qualquer dia desses vou te levar para cantar no programa de rádio     
          Gabriela tinha, então, uns sete anos. Pequenina, jeitosa, com ar matreiro, próprio das meninas trigueiras, escutava extasiada aquela mulher exótica, que gostava de ouvi-la cantar.
                Um domingo, início de tarde, Nair preparou Gabriela de um modo todo especial. Os cabelos penteados com pequenas trancinhas, o vestido azul enfeitado de bico de renda, rodado sobre uma anágua engomada, sapatinhos brancos e meias bordadas à mão. Orgulhosa do seu feito observou:
                -Que gracinha! Vai fazer sucesso com essa carinha de boniteza! Gabi, vou agora te levar ao programa da rádio. Mas não digas ao teu pai, senão ele me torce o pescoço. Presta atenção!
                Disse isso, segurando delicadamente o braço da garotinha que, assustada, de olhos arregalados, perguntou febrilmente:
                - O quê? Vou cantar no programa da rádio?
                -Sim, retrucou Nancy. Vamos logo, senão chegaremos atrasadas.
E, em seguida, arrastou docemente a menina que se deixou levar, pulando de felicidade. Ônibus lotado. As pessoas se encostavam umas nas outras procurando espaço. Ela protegia a garotinha, como se fosse uma louça de porcelana.
-              Ei! Cuidado, não tá vendo a menina?
                Falava irritada com quem ousava empurrar Gabriela, enquanto passava para o outro lado do ônibus.
                Chegando ao ponto final da parada, desceu agitada, suando e reclamando:
-              Deus me livre, isto é de matar! Você tá bem, minha filha?
                Perguntou com aquele ar de mãe zelosa. Veja! Já chegamos... O auditório da rádio estava superlotado. Espalhavam-se pelos lados, crianças, jovens e adultos.                                          
           Mas Nancy já conseguira um lugar com o Gerardo, seu namorado. Ele, há muito, estava esperando:
-              Mulher, demorou um bocado! O programa já vai começar.
                E olhando para ela, acrescentou:
                - Será a terceira. Já falei com o Augusto.
                 Gabriela, com o olhar ávido, curioso, demonstrou, às largas, sua  alegria infantil.
           O tempo passava... Um garoto de seus dez anos abriu o programa, cantando uma música de Adelino Moreira, gravada por Nelson Gonçalves. Logo depois, uma menina branquinha, com sardas no rosto, voz fina, trêmula, cantou uma música de Marino Pinto e Paulo Soledade, gravada por Dalva de Oliveira, "Estrela do Mar" (Um pequenino grão de areia....). Sua vozinha era estridente e desafinada.
           Chegara a hora de Gabi, e o apresentador anunciou:
                - Atenção, auditório! Agora, vamos escutar a garota revelação. E, olhando para Gabriela gesticulou e a chamou ao palco. E... lá foi Gabriela, esfregando as mãozinhas, parecendo um canarinho assustado.
                  -   O que vai cantar? Perguntou o Augusto.
                  -    “Asa Branca". Respondeu Gabriela, prontamente.
                  -     Ela cantará Asa Branca, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga. Falou o apresentador.
                  -  Vai oferecer para alguém? Pergunta delicadamente.
                  -  Pra minha avó, respondeu. 
                  -  Muito bem! E, baixando-se, indagou-lhe:
                  - Qual é o nome da vovó?
           Gabriela, orgulhosamente, disse:
                   - Vovó Hermínia
           Então, anunciou com sua voz possante:
             - Atenção, D. Hermínia sua neta, Gabriela, vai cantar  Asa Branca e oferece à senhora. Parabéns!
               A pequena Gabriela cantou, nesse dia, como nunca o havia feito. Irradiava alegria. Todos ouviram com empolgação e, ao final, aplaudiram entusiasmados. Foi um sucesso! Nair saiu cheia de si.
           Ao chegarem em casa, o pai de Gabriela já estava esperando as duas. Ouvira pelo rádio a menina cantando. Estava exasperado.
           Ao chegarem em casa, ele fez-lhe ver que não queria, em absoluto, uma filha cantora,  e que nunca mais repetisse o feito. Falava com autoridade, de pai cuidadoso e fiel as suas convicções. Meu pai era de uma geração que mantinha valores conservadores e rigorosos.
                E, dirigindo-se para a filha com seus olhos pequenos mas afiados de censura, disse:
           - Vá imediatamente para o seu quarto! E não me desobedeça.
          Gabriela correu entristecida, subindo a escada do casarão. Escorregou e levantou-se rapidamente como se estivesse fugindo de chuva forte em tardes quentes.
           Nancy saiu enraivecida, ante a reação do pai da menina. Ela esperara o pior: que ele a mandasse embora. Mas, comentava na cozinha com Raimundinha, a doceira da casa, que era uma tolice esse pessoal não deixar a menina cantar. Coisa de gente rica!...
           No outro dia, Gabriela amanheceu a sorrir. Nada conseguira ofuscar a sua glória, por mais efêmero que fosse. Só que ela não lograva entender por que seu pai não ficara feliz, se ela havia cantado tão bem!
           Nancy, por sua vez, comentava com os vizinhos:
            - Coitada da menina, ela leva tanto jeito!...

            A partir de então, todas às vezes em que assistia aos programas de auditório, Nair não conseguia disfarçar sua tristeza. Resmungava. Chorava pela garotinha, que não podia realizar seu sonho infantil. E não compreendia o motivo da proibição paterna.

A festa de casamento

A FESTA DE CASAMENTO
                                                                              Regina Barros Leal
                Uma tarde de domingo. A meninada corria na pracinha ao lado. A vila estava em festa. Era o dia do casamento de Lucinha, a garota mais bonita de Suruaru. Bem-nascida, filha do Coronel Sinhô, ela espargia cheiro de rosa por onde passava. Todos os rapazes sonhavam casar com ela. Só sonhos. Lucinha iria esposar o bacharel em direito,  Dr. Eduardo, moço bonito das bandas da capital. Rapaz engomado, com ar de opulência escancarada. O pessoal de Suruaru não simpatizava muito com o  seu jeitão de menino mimado. Mas, o que fazer?  Iriam assistir à chegada dos noivos, do lado de fora da igreja, pois que só entravam os convidados do Coronel: a gente importante da cidade. Um magote de gente fina, embestados, assim  dizia Zé Mãozinha, apelidado por conta de um defeito de nascença. Sua  mão esquerda era  pequena e com os dedos encolhidos.
            A vila toda estava do lado de fora da igreja, com exceção do padre, do juiz, com sua mulher e filhos, do promotor, dos deputados, do Dr. Soluço, médico da cidade que herdara o apelido pelas frequentes noites de boêmia. Além deles, os  ricaços da cidade. Foram esses os convidados. Aos outros, fora-lhes dado o direito de assistirem à entrada e  à saída dos noivos e convidados.
                18 horas. Os sinos tocaram anunciando um tempo de festa.  Aperreados, o padre e o sacristão apareceram na frente da igreja. Faltara a Amelinha, a moça que parecia um rouxinol ao cantar. Mariazinha, acalmando os ânimos, afirmava que não se preocupassem. Amelinha era assim mesmo, agradava- lhe chamar  a atenção.  Pouco tempo depois, dissipando as dúvidas, ela descia do Jeep, acompanhada de sua mãe, Dona Ermengarda, costureira fogosa da região.
                19 horas. Os convidados, mulheres, homens e crianças, arrumados de tal maneira que mais pareciam manequins de lojas chiques, desdenhavam as mulheres fofoqueiras de Suruaru.

Os carros estacionavam perto  da Igreja e, de dentro deles, desciam senhoras cheias de paetês e plumas, opulentas, caminhando com desenvoltura sobre sapatos de salto alto e  de bico fino;  homens de ternos escuros, crianças e jovens coloridos e sorridentes. Não havia indícios de escassez, muito pelo contrário, era um festim, assinalando uma  riqueza atordoante.
                 O casamento era de arrebentar! Afinal, ela era a filha do coronel Sinhô, o homem mais poderoso daquelas bandas.
                20 horas. O noivo aparece de fraque branco e cabelos brilhantes. Irradiava alegria e  um certo toque de esnobismo.
                 21 horas. E... a noiva não aparecia. O burburinho da igreja já ecoava. Os convidados, desassossegados, mexiam-se nas cadeiras. Alguns haviam chegado às 18h30min. Que desperdício de tempo! Resmungavam. O calor desmanchava os penteados de algumas convidadas que exageraram no laquê. O noivo, a essa altura, enxugava a testa molhada de suor, já brilhando ao efeito da luz da capela, que por sinal estava enfeitada com flores do campo e rosas vermelhas.
                O tempo passava inexorável, e... Nada de noiva! Nisso, chegou correndo um menino da fazenda. Era o Tonho. Procurava o Coronel. Foram para  a sacristia. O noivo, já pálido, pedia um copo com água. A mãe, quase desfalecendo de ansiedade, embaraçada pelo vexame, não sabia onde colocar as mãos trêmulas pela aflição da espera..
                O Coronel chamou o noivo, e conversaram baixinho. Zombeteiros, os convidados já cochichavam maliciosamente, afirmando que a noiva não viria, desistira de casar.
                 Passaram cinco intermináveis minutos. Depois, voltando da sacristia, o noivo demonstrava alívio. Parecia estar mais calmo. Seu rosto expressava um sorriso amarelo. Algo estranho teria acontecido, mas o problema já fora solucionado. Dessa forma, retorna ao seu lugar, muito embora abatido.
                 O coronel, ressabiado, dirigindo-se aos convidados com um gesto de mão,  comunicava que a noiva estaria vindo.
                Poucos minutos depois, eis que ela chega. Desce do carro. Os cabelos soltos, adornados por uma linda tiara, desciam sobre os ombros. O vestido era branco, de renda francesa, bordado de pérolas e pedras. Circulava o boato de que o coronel o encomendara de Paris. Lucinha, a noiva, descorada, um pouco atordoada, revelava um rosto contorcido por algum desconforto. Adentrou a Igreja, ao som da marcha nupcial, devagarinho, segurando o braço do coronel.  Seu andar vacilante, desengonçado, denotava insegurança. Conseguiu, a muito custo, chegar ao altar, revelando esgotamento pelo visível esforço.

           O padre iniciou a celebração. Todos acompanharam a missa. Lá para as tantas, o coronel deu a entender ao celebrante que fosse mais rápido. Pronto atendimento. Terminou a cerimônia. Nem a cantoria aconteceu.  Os noivos se beijaram e, desajeitados pela pressa, quase escorregaram ao sair da igreja. Pareciam consternados. Nem as flores jogadas fizeram brilhar os seus  rostos aflitos. Tampouco compareceram à recepção.

                Comentaram que Lucinha tinha sido acometida de uma forte diarréia. Comera um queijo arruinado. Era tamanha a dor de barriga que quase não conseguira ficar em pé. Foi necessário usar uma fralda da avó que sofria de incontinência. Falaram até que o vestido de noiva ficou uma desgraceira.

Pior! Dizem as más línguas que, naquela noite..., o noivo passara o tempo abanando o vento.
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A  VISITA
                                                   Regina Barros Leal

                Meio dia. O sol escaldante. O suor corria a cântaros. Sentada em um barranco, coberto por uma tábua de madeira, esperava o carro que viria me apanhar. Naquele dia fui visitar uma amiga que morava num bairro da periferia. Estava doente. Lastimável situação. Ela me parecera tão debilitada e indefesa! Enquanto esperava, recordava a cena anterior.
                Ao chegar a porta de sua casa bati levemente. Sua irmã atendeu.
                -Olá. O que deseja? Disse num tom frio e com  um olhar desconfiado abriu a porta e deixou que eu entrasse, já nessa altura, desconfortada pela seca recepção.
                Sua irmã, uns dez anos mais velha, era quem cuidava dela. Denotando   impaciência, ajeitou o avental azul, desbotado pelo uso. Não sei se foi impressão minha, mas,  achei que seu tom era de alguém irritado, ao  dizer-me:
                -Entre. Madá esta lá no quarto. Cuidado para não pisar no fio do               ventilador, alertava, apontando para o chão de cimento esverdeado.
                  - Obrigada, mas onde fica mesmo o quarto? Não conheço a casa,  disse  um pouco constrangida, pelo seu tom de voz.
                -Dobre à esquerda logo aí, depois do armário. Falou com frieza.
                O armário a que se referia era  um  pequeno móvel de madeira escura. Chamou-me a atenção pelo detalhe de sua forma. Parecia uma arca antiga já desgastada pelo tempo.
                Entrei no quarto. Sombrio. A cortina da janela basculante,  era  improvisada com um esgarçado  lençol azul marinho, usado para  evitar a claridade. Um cheiro de éter  exalava por todo o aposento., impregnando as paredes, os objetos. Quase desmaiei. De uma maneira geral odores fortes me incomodam.
                - Oi, Madá! Dirigi-me a ela observando seu semblante pálido, marcado  pela dor.
               - Olá. Respondeu fragilmente. Sua voz denotava um tom de desconforto.
           -   Madá, trouxe o retrato da turma, como você pediu. E tirando-o da minha bolsa de couro,  fui entregando.
                 Para sentar-se na cama, ela fez um esforço, que me pareceu gigantesco face a sua debilidade física.
                 E continuei como se não houvera percebido.
                -   Veja, a Laura está grávida do segundo filho. Ela pediu que avisasse   que da próxima vez virá. Dizendo isso, passei minha mão direita em sua cabeça  afagando os seus cabelos, já escassos pela quimioterapia. E ela aceitou placidamente o gesto de ternura.
                - Se houver oportunidade, pois estou muito fraca. Minhas pernas já não respondem ao meu comando, e minha cabeça dói continuamente.  E essa dor no peito! Balbuciava baixinho crispando seu semblante, outrora  juvenil.
                -Deixa de falar tolice, Madá, repliquei.
                Foi quando, olhando mais fixamente, encarou-me  expressando a sua dor e a noção de seu tempo:
                -Não me subestime, Márcia. Espero que esta aflição não se alongue. A dor  é insuportável!  Não vale a pena sofrer inutilmente. Quisera poder fazer     alguma coisa, mas não tenho ânimo. Respirou com dificuldade e continuou:
-     Essa sensação me deixa perturbada. O jeito é a resignação. E tenho buscado isso na fé. Mas,  como você bem sabe, sempre fui muito distraída!
                Ao terminar de falar, suas mãos trêmulas procuravam um copo de água, colocado na mesinha de cabeceira. Pude observar rapidamente que tinha uma caixa de remédios, uma vela de 7 dias, uma Bíblia e a foto que lhe dera. 
                De súbito, entra sua irmã.
                -   Madá, está na hora da injeção! E num gesto rápido sem que eu  pudesse  perceber, afastou minha mão de sua cama.
                - Sinto muito, mas é preciso, senão ela não suportará as dores. Você me permite ?
                - Claro, respondi meio desconcertada. Segurei minha bolsa e fui saindo do quarto.  Foi então, que ouvi sua voz quase inaudível:
-              Márcia, abrace as meninas por mim. Sinto muito!, disse, desculpando-se por não poder dispor de mais tempo. Seus olhos marejavam e ela olhou-me como que dizendo adeus.

                Saí, e carregando a tristeza sofri profundamente pela inexorável finitude humana.

Desencontro

DESENCONTRO
                                   Regina Barros Leal

            Naquela tarde fui ao shopping. Andando, devagarinho, olhando as vitrines refinadas de algumas das lojas, principalmente as de roupa feminina. Enquanto comia pipoca, envolvida pelo fascínio do marketing, pensava com meus botões sobre as minhas possibilidades de consumo, obviamente chegando à conclusão de que não dava mais para satisfazer nem algumas das minhas miúdas necessidades. Tal sentimento não me intranquilizava, talvez pela certeza de saber que não podia comprar, como antes. Frustração. Isso certamente deixava-me a vagar meu olhar indefinidamente pelas lojas.
            Então eu o vi. Grande foi a satisfação com que fui me dirigindo ao seu encontro. Como se fora num filme, pude rever algumas cenas do passado nas quais vivi muitas emoções: as passeatas, os grupos de estudo na UFC,  as  reuniões de estudantes, os jogos universitários, os passeios nas passarelas da universidade. Parei perto dele e me aproximei movida pelo desejo de cumprimentá-lo. Confesso que senti saudade dos tempos idos da juventude e da vida universitária. Foi, então, que me dirigindo a ele, falei-lhe:
            - Olá, Artur! Como vai você?
            Ele me olhou com ar de desconfiança, expressando através de seu cumprimento, que não sabia quem era aquela pequena mulher. Misturavam-se em mim, a surpresa e a alegria de rever o amigo.  Havíamos sido companheiros e compartilhado muitos momentos. E insisti:
-           Não me reconhece? Será que mudei tanto assim? Alguns me dizem que não! Até perguntam se não fiquei no freezer.
            Foi aí que sua expressão mudou da desconfiança para a perplexidade. Pude observar com mais atenção sua indumentária. Estava trajada de calça de linho marrom escuro, camisa de cambraia branca, bem talhada, sapatos pretos de verniz, modelo clássico.
            Nisso ele diz:
            - Lamento, mas não estou reconhecendo à senhora.
            De novo aquela expressão - Senhora, prova da marca do tempo. Isso, às vezes, me aborrece, noutras, tiro algum proveito do que esta condição me proporciona.
             Falei, um pouco sem jeito:
             - Não está mesmo lembrado? Eu sou a Márcia, sua contemporânea de universidade. Estudávamos juntos com a Beth, a Ana e a Teresa. Recorda dos bons tempos em que participávamos das passeatas, que íamos ao Céu? Você discursava sobre Marx e a revolução do proletariado, Lênin, Freud e incitava o movimento estudantil. Você era um dos melhores. Subia nas mesas e convocava os colegas a participarem. Rapaz ainda hoje eu admira sua determinação e suas ideias revolucionárias em favor de uma sociedade justa. Você realmente impressionava. Todos nós dizíamos que era o máximo!

            Na verdade, eu me associava a vários desses movimentos, mas não tinha a convicção política e ideológica que fazem a diferença. Percebo, ao recortar parte da minha história, que participava das passeatas, tinha clareza e consciência do movimento, compartilhava das concepções ideológicas que sustentavam a luta estudantil, dos compromissos e dos riscos. Mas era só. Não fui uma militante política na plena acepção do termo.
            Mas, voltando à cena, que já se constituía uma situação de vexame, ele exclamou:
            - Ah! Agora me lembro! E dirigindo-se à jovem mulher que estava ao seu lado, falou em um tom meio sem graça. Isso foi no tempo em que eu era “doidão”.
             Foi aí, então, que olhei para a sua companheira. Elegante, bem maquiada, não negava a sua condição de classe abastada, não apenas por esse motivo, sobretudo, pela postura própria de quem se põe acima dos outros.
             E olhando com certo ar de indiferença disse:
           -           Então ela é umas daquelas? Perguntara.
             Pensei. O que essa expressão significava? Poderia ter muitas interpretações. Foi quando ele esclareceu:
         -Sim, ela era daquelas que participavam do movimento estudantil.
           Olhou, então, para mim, e com um ar de ironia, boca retorcida com um riso de canto, transparecendo pouco caso, falou:
           - É... Parecíamos um bando de tresloucados. Ainda bem que não guardei registro. Sabe, hoje sou empresário e bem- sucedido, tenho uma ótima condição de vida. Já pensou se houvesse continuado naquilo? Tolices que cometemos quando somo jovens. Não concorda?
            Não falei nada. Parei e o fitei, não reconhecendo nele, aquele universitário de jeans, camiseta de malha, cabelos soltos, esvoaçantes, sandália tipo franciscana, animado, vibrante, de olhos curiosos para o mundo; desejoso de mudança, febril em seus projetos políticos! Não reconheci nele os sonhos que o embalaram naqueles dias e noites distantes de um passado renegado.
            Finalmente, dei por concluído o que parecera tão promissor e terminara tão opaco, sem graça.

            - Pois então, tchau. 

Estudar?

Estudar?    

Regina Barros Leal  

    Era um dia como qualquer outro. Isabel estudava no seu quarto. Os livros espalhados em sua cama mostrava suas investidas  Era um frenesi acadêmico. Uma espécie de gula.  Lia um livro,  procurava os dicionários de filosofia, sociologia, economia para poder entender o autor. Tudo se tornava enfadonho e cansativo. Ela se perguntava para que tudo aquilo ? O professor exigia muita leitura, cobrava nas provas  e daí ? Em que esse tipo de conhecimento contribuiria para melhorar sua vida? Em que estas leituras estavam interferindo no seu olhar sobre o mundo? Não sabia ainda responder.  Resolveu  ouvir música clássica, poderia aliviar a tensão. Vivaldi... gostava muito de ouvi-lo . Debruçou-se novamente sobre os livros. Folheou os textos,  fez anotações, releu algumas das passagens sobre Vigotski, Piaget e, assim, foi indo. Que vida! estudar sem ter a experiência  fica um tanto quanto difícil. Bom para as alunas que já trabalham  nas escolas estas poderiam olhar para dentro, para o interior das instituiçòes e analisar suas práticas. Mas, ela, pobre coitada!  Não sabia o que era a escola, a não ser como aluna. Ah! bons tempos o de aluna. A professora magrinha, D. Jorgete, sempre de voz mansa a pedir silêncio, e a turma fingindo que não ouvia. Livros espalhados nas carteiras. Tudo era motivo de júbilo. Mas D. Margarida,  a amorosa presença, não deixava passar nada e pedia silêncio batendo com a régua na mesa. Regozijo na hora do recreio. Como nos divertíamos... comer pipoca, jogar queimado, carimbo, pular de corda e paquerar com os meninos. Venturoso tempo!  Insigt!  Valéria  deu- se  conta de que poderia , a distância, ter um olhar diferente, de estranhamento e percebeu que sua escola  tinha normas, horários, regras, metodologia, reuniões de pais, castigos e premiações. Observou que aprendera português através de leituras repetidas , de uma enxurrada de cópias e  ditados. Notou que  a Geografia e a  História eram matérias tidas como decorativas e a Matemática significava um verdadeiro massacre.  Viu o currículo oculto expresso nas atitudes padronizadas dos professores e alunos, os pactos escondidos, as falas autoritárias.
Continuando sua travessia, viu  também  suas manhãs de estudo em equipe e das aulas monótonas do  rígido e mirrado  professor de história. Os enfadonhos  questionários!  Não aprendera muita coisa dessa disciplina.  E as lições de casa do professor de Inglês na 6a série? Esse foi um tempo difícil. Era um senhor de barba e bigode. Estranho relacionamento. Ninguem o conhecia mais de perto. O engomado mestre, hirto, fazia questão de se manter distante. Poxa! Era totalmente diferente da professora  Joana, que ensinava Educação Artística. Aquela era uma mulher e tanto! Além de fazer uma bela confusão estética com a música e a pintura, tinha um espírito jovial, um jeito  matreiro e um bom relacionamento. E o Diretor ? Quase sempre  sisudo quando via a  expansiva alegria, confundida com indisciplina. O bedel,  atento, denunciava, cheio de poder, as transgressões juvenis. Que desperdício!           Perplexa, espiou, na sua caminhada  histórica. Enxergou  o colégio de  2o grau!  Principalmente nas 2o e 3o séries.  Deus meu! Era um festival de medalhões metidos a engraçados, contando as repisadas piadas e perpetuando as mesmas brincadeiras extravagantes .  Era um maneirismo só.  Salvo raras exceções, os professores não faziam a diferença. Que mesmice! Revelada no  formato engessado do ensino de caráter  propedêutico. Apostilhas, corujões, bizus.  Um martírio imposto pelos recrutadores do vestibular. Era a sina dos jovens em que os pais depositaram seus sonhos juvenis. O que fazer?         Márcia esgotada do percurso intrigante voltou a pensar no trabalho que tinha de entregar. O professor exigira afirmando que era para a nota. Curioso, ele não se referira a aprender.  Só repetia, incessantemente,  que o trabalho valia dois  pontos.
Que saco!

De repente o sorriso

De repente o sorriso
                                               Regina Barros Leal

A primavera chega
O sorriso das crianças orvalha a varanda da casa
Correndo os duendes surgem com suas artimanhas malucas
A sonora gargalhada da menina fujona ecoa no salão de festa
O sol adentra o sobrado em sua soberania
Maria corre em alvoroço pela estrada larga
Afoita tenta apanhar os raios de sol que se espalham
Busca colher os sonhos que esperou durante o inverno
Rigoroso, maltratou os peixes do aquário antigo.
Ressecou as papoulas do portão de ferro da velha casa
Machucou as plantas em sua forma gélida, branca e endurecida.
E os sonhos se perdem no espaço, quebrados, esvaídos.
Maria sorrindo despede-se da brancura da neve
 E abre alas para a primavera vestida de cores.



O tempo do envelhecer

O tempo do envelhecer
                           
                               Regina Barros leal

Os olhos embaçados pela tristeza
O andar lento e temeroso 
Um rosto distante com fortes marcas do passado
O amor companheiro
O humor esgarçado
Pequenas fissuras nascidas da convivência
No cotidiano, o desalento do amor esmaecido.
O tempo se esvai e carrega tanto a dor, quanto a alegria
Os enormes olhos pretos e sedutores se foram
Transcendendo o hoje, ainda busco a magia da recordação.
Encontro o amado, o amante e os beijos apaixonados.
 A beleza da cumplicidade em cada gesto
O companheiro tão doce em mil situações
Rude no desatino da desesperança
Temperamental e amante ardente
O tempo passou, eu sei.
Ah! Mas os seus cabelos brancos me enternecem


DESVENTURA





 Desventura
                                               Regina Barros Leal

Corria desvairada pela rua deserta
Contorcendo-se, sente uma súbita aflição.
Ah! Aquela agonia inexplicável! Um estranhamento!
Suas mãos gesticulavam como que apanhando a poeira do tempo.
Os sonhos em fuga e as ilusões perdidas.
Dor da perda, do arrependimento, do erro, da palavra dita.
E o tempo, indiferente, não retrocede.
 Sua alma, devastada pelos ressentimentos mil, queda-se.
 Perdera-se no espaço vazio da desilusão.
Uma vermelha dor rasga o seu peito.
 Fragilidade no instante!
E o amanhã será diferente?
Eu creio.


LETICIA


Letícia
                                        Regina Barros Leal

                  Madrugada!  Letícia impulsionada pelo desejo de escrever deixa as mãos digitarem com frenesi. Sua cabeça fervilha de ideias e se apodera do tempo, rememorando fatos e  situações. Surgem recordações imprudentes e impudentes que dão a narrativa o tom do pecado, do proibido, da cobiça camuflada, como se fossem esconderijos das estreitas ruas de cidades exóticas, de labirintos intermináveis. Lembra Hades, o Deus grego, em seus intermináveis subterrâneos. Nesse itinerário do não explícito, do invisível, do anônimo, do bizarro, expressa, à sua maneira, anseios, segredos, subjetividade, subjetivação e singularidades. Percorre o imaginário encontrando o passado vivido. Materializa-o, toma forma, ora provisória, lacunar, fragmentada e imprevisível, ora totalizante, holística e plena.
                 Deste modo, sua escrita trilha o caminho da inspiração, da fantasia, do imponderável, das descobertas, escapando dos desvios que surgem inesperados e das ruelas traiçoeiras da vulgaridade. Rememorar a vida a encanta e assim ela o faz sem resvalar para um saudosismo obsessivo. Escrever torna-se um desejo constante, uma atração arrebatadora, uma curiosidade queimante. Através da narrativa, abre fendas no tempo e caminha pelos labirintos sedutores da memória, sem aflição. Persiste em sua aventura, impulsionada pelo desejo de reviver estórias exultantes, fatos simples, pessoas marcantes, os ternos amores e as paixões proibidas. Ah! As paixões que estonteiam, marcam a existência e arrebatam sentimentos incógnitos, abismais. São como brumas densas, penachos de fumaça, bosques virgens, caminhos desconhecidos, soando, às vezes, como borrascas e ou terremotos súbitos e devastadores.
                 Leticia alça voos e, brincando de fada transforma sapos em príncipes, burros em cavalos alazões, casebres em castelos encantados. Narra estórias sobre o cotidiano, chora partidas, relata episódios e espreita o passado, através do olhar observante do seu presente.  Às vezes, seu coração se avermelha, sangra com a dor do amigo e se regozija pelo sucesso de pessoas que alcançaram seus sonhos e cantam a vida.
                                        
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O casarão revisitado


O Casarão revisitado
                                 Regina Barros Leal
                                                          
            Silêncio no casarão. Tínhamos ido repartir os objetos: porcelanas, lustres pintados. Ah! Aquela mesinha de vidro. Telefones antigos, retratos, espelhos, cadeiras, dentre outros, que fizeram parte de nossa história. Estávamos desajeitados. A ampla sala, palco de muitos encontros, desnudada, refletia o abandono. O casarão tinha sido comprado e certamente seria demolido.
             Sentamos e olhamo-nos como que perguntando por onde começar.  Um tempo silencioso... Marejado de reminiscências. Depois, como que para quebrar o gelo, iniciamos a partilha. Contingência. Tivemos que nos desfazer do casarão. Era uma satisfação miúda, misturada à melancolia, mas sutilmente afugentada pela satisfação de outras necessidades resolvidas.
            Enquanto meus irmãos conversavam, subi ao meu antigo quarto, colcha branca, protetora e repousante, refúgio de júbilo e aflições não ditas. As janelas descortinadas deixavam entrar os últimos raios de sol daquele fim de tarde. Recordei passagens singulares Comecei a rebuscar minhas lembranças infantis: estórias povoadas de fadas, bruxas, princesas, piratas, fantasmas. Evocações permeadas de uma alegria medrosa. Coisas de criança. Buliçosamente, entrevi meu passado povoado de fantasias.
            Insisti. Reencontrei minha infância, saudável, naquele casarão, com minha família, onde vivi minhas experiências de criança privilegiada. Não faltavam chocolates, doces, brinquedos, nem tampouco amor. Que lembranças! Jogando “mãos ao alto” com meus irmãos, brincando de adulto, organizando peças de teatro. Eu, então, alegrava-me muito ao cantar. Naquela época, meus pais armavam um palco numa garagem bastante espaçosa, com cortina de veludo vermelho, tablado, tudo a que se tinha direito, e convidavam a família. Meus tios elogiavam a atuação dos seus pequenos artistas, alguns meio atrapalhados, pequenos iniciantes amadores. Era um momento mágico onde a fantasia corria pelos campos da imaginação. Quase indescritível.
            Como saboreava aquelas tardes compridas que se encontravam com a noite que chegava de mansinho! O entardecer.  Recordo-as, nitidamente.  Foram de uma beleza, ímpar porque permeados pela magia dos sonhos e dos folguedos infantis. Rir, saltar, correr, pular de corda, andar de bicicleta... Tudo isso naquele espaço enorme onde meu pai construíra o casarão. Ah! Meu pai. Homem inteligente. Personalidade marcante. Sujeito avançado, criativo, lépido e determinado. Seu legado de força influenciaria nossas vidas para sempre. Ele se eternizou em cada um de nós.
            As recordações brotam. Meus 15 anos! Adolescência. Os fortuitos namoros, as mãos trêmulas, os medos, as primeiras descobertas, o primeiro beijo. As serenatas!  As canções apaixonadas e os corações saltitando sob as camisolas de seda. Janelas descerradas e olhares de paixão. . Ali escutávamos os trovadores juvenis Minha mãe, doce criatura, compartilhava de nossas emoções. Sua presença confundia-se com a beleza da noite. Afetuosa mulher
             18 anos! O caminho das rosas que perfumam e ferem as almas com seus voos vazantes. Descobertas adultas e corpo de mulher. Pensamentos e sonhos impudentes!  Tempo dos ventos de verão, das tormentas, do paraíso florido pelos sonhos fartos e generosos. Fred, Marcelo povoavam meus devaneios. Mas a efemeridade os jogou pelas fendas do tempo.  Lembrou Victor Hugo: “Sede como os pássaros que, ao pousarem um instante sobre ramos muito leves, sentem-nos ceder, mas cantam! Eles sabem que possuem asas”. Iria voar nas asas das quimeras e adentrar os momentos de fragilidade e transcender o cotidiano na preciosa imaginação e na singular fantasia. 
             Na penumbra do quarto, repassei minha vida e chorei!  Não só pela despedida do casarão, mas pelo adeus ao tempo, aos tropeços da meninada, as esgarçadas relações que se diluíram na distancia. Chorei pelos amores perdidos, as intrigas não resolvidas, os perdões esquecidos. Entretanto sorri, gargalhei com a primavera dos amores correspondidos, sorri com a chuva de prata dos dias de lua cheia em que namorávamos escondidos, das sessões da tarde, das missas assistidas. Éramos felizes.
            Ouvi alguém me chamando:
-           Lucia, estamos esperando, desça. Era meu irmão mais velho. Senti sua voz trêmula, inconfundível. Ele sempre foi muito emotivo.
-           Já estou indo! Respondi um pouco desorientada pelo brusco retorno ao presente.
            Fui descendo a escada de mármore. Era tão bem cuidada por minha mãe! Aquele mármore branco, reluzente, já desfeito pelo desgaste do desuso.
            Olhei para todos e percebi o quão estavam perturbados. Quem sabe, não fizeram o mesmo percurso? Meus irmãos, crianças de outrora, companheiros de brincadeiras. Hoje, parceiros da saudade.
            Saímos devagar. Ronceiros. Despedidas murmuradas. Rostos entristecidos. Gestos vagarosos.
            Chegando a casa fui guardar os objetos, testemunhos silenciosos de minha história. Não foi fácil vender o casarão, herança de nossos pais, local vivo de muitas recordações. Nós, inquilinos do passado, pagamos um melancólico tributo pela nossa despedida.

             Nessa noite, quase não dormi.  

Quem sou eu

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Fortaleza, Ce, Brazil
Sou uma jovem senhora que gosta de olhar o mundo de um jeito diferente, buscando encontrar o indecifrável, o indescritível, o inusitado, bem como as coisas simples e belas da vida.